segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ainda somos os mesmo e (não) vivemos como nossos pais


Por aqui, olhando meus e-mails como todo dia (ou quase todo dia), encontrei esse texto, enviado pelo meu pai há uma semana mais ou menos. Não sei se foi uma indireta, se foi um alerta, ou se foi apenas um texto legal (EXTREMAMENTE LEGAL!)que ele achou que eu deveria ler. De qualquer forma, a ideia é perturbadora e deixa quaquer jovem, por mais realista que seja, com uma pulga atrás da orelha e uma indagação na cabeça: "eu sou assim?" É meio extenso, mas vale cada linha.

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco
e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos
diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada.
Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar
com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia,
despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em
viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da
vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que
nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da
dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras
línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma
geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a
ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o
mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma
continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente,
que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que
queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece –
sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e
desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam
tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é
construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com
ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não
conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito
animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento
importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa
época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de
direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os
filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e
protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem
reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores.
Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível
uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte
do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço?
Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva
sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como
de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor
está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é
quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado
com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na
balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos
genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C,
que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço,
existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que
as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos
jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e
filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a
frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração
do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de
jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido.
Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem
terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o
menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é
também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja,
consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes
filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta
não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão.
Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este
momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se
explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E
mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da
confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a
felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais
supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem
sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado?
Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer
duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da
falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da
completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a
escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o
mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais
cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a
família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para
ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos
pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem
ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo
e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma
ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada
vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais
fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a
felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na
própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem
se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os
filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso
criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida
inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance.
Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem
porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que
se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas
aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas
possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de
realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria
vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores
com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se
é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem
nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas
próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma
boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira,
meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como
sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou
“Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas
estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode
significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o
trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão
ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o
frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo
simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou
emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma
garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar
pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar
ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado
muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua
desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a
vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo
injustiçado porque um dia ela acaba.

(Eliane Brum)

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